Estes meses de Verão têm sido bastante frutíferos no que a leituras diz respeito. Felizmente, por entusiasmo sem limites, por excesso de tempo livre ou por saudades do ato de ler por prazer, as leituras dos últimos meses têm-me levado por caminhos tortuosos até a um misterioso Mosteiro no século XIV, a Trás-os-Montes e uma história de amor em pleno Estado Novo, até Einstein e à Fórmula de Deus ou, mais recentemente, a personagens e lugares misteriosos cheios de misticismo típico dos contos Orientais. Hoje apetece-me falar deste último A Salvação de Wang-Fô e outros contos Orientais da escritora belga Marguerite Yourcenar. O pequeno livro de contos, compilação da editora Biis, com um preço simpático foi a minha companhia durante a viagem de Lisboa-Faro na passada sexta-feira.
Este pequeno livro esconde personagens míticas de lentas e historias orientais de todos os tempos e foi muito fácil envolver-me nas suas motivações e ensinamentos constantes.
A Salvação de Wang-Fô, ou a Fuga de Wang-Fô, é o primeiro texto que aparece na referida compilação.
Nele, Wang-Fô é um velho e famoso pintor que, sem encontrar raízes no lugar onde vive, decide partir na companhia de um aprendiz de pintor, Ling. Wang-Fô é um apaixonado pela arte e pela pintura que troca para ter o que comer e onde dormir. Um dia, num dos lugares onde haviam pernoitado durante a sua viagem, foram capturados e levados à presença do imperador. Este condena Wang-Fô e Ling à morte e explica as suas motivações. É então que o poderoso imperador revela que em desde q nasceu foi encerrado num quarto e, desta forma, privado do contato humano. O que lhe fazia companhia, a sua realidade e a sua janela para o mundo era uma coleção de quadros pintados por Wang-Fô com paisagens fantásticas que o seu pai tinha adquirido. O imperador crescera e havia viajado por todo o mundo e conhecido muitas cidades e visto muitas paisagens e nesse momento sentira-se injuriado uma vez que as paisagens que sempre conhecera na sua infância, as pintadas por Wang-Fô, eram infinitamente mais belas e deslumbrantes do que as reais. O irado imperador culpabilizava o velho pintor por este o ter iludido. Sentia-se enganado e por esse motivo Wang-Fô devia morrer. Este, no entanto, tinha um último pedido ao pintor: que terminasse de pintar um quadro seu que não tinha sido terminado. Devia terminá-lo e posteriormente ser-lhe-iam cortadas as mãos e entregar-se-ia à morte.
Wang-Fô assentiu e começou a pintar o seu quadro mas, enquanto o ia pintando o quadro ia ganhando vida e lá apareceu Ling, o seu companheiro de aventura, dizendo-lhe que não se preocupasse que tudo correria bem. O desenho à medida que ia sendo pintado foi-se tornando vida: um rio e um barco. O mesmo rio e o mesmo barco que o levaram, a ele Wang-Fô e a Ling, para longe daquele lugar e de uma sentença de morte.
O texto tem um final misterioso e mágico onde a pintura se funde com o pintor e se torna a sua própria fuga e, portanto salvação da morte.
Este texto fez-me recordar, em termos muito gerais, um dos meus livros preferidos O Retrato de Dorian Grey de Oscar Wilde em que no final, ao cortar o seu retrato, um retrato que ganhando vida ia envelhecendo, corta-se a ele próprio que acaba por sucumbir. Também recordo aqui alguma alusão, algo dissimulada e com nuances distintas, à metáfora da Alegoria da Caverna de Platão numa referência à (s)realidade(s) ilusórias.
Penso que o segredo é este: se amamos o que fazemos, se acreditamos no que construímos e no que nos rodeia, se confiamos na nossa realidade então não vale a pena pintar realidades diferentes, embora saibamos que elas existam, não vale a pena. Pelo contrário, deixemos que essa [nossa] realidade nos salve, deixemos que ela seja um barco e que esse barco nos guie.