"Ética é estar à altura do que nos acontece" de Gilles Deleuze
E isso implica, muitas vezes, assumirmos a liderança da nossa vida e a responsabilidade pelas ações e opções que tomamos.
Implica, necessariamente, honrarmos a nossa vontade de querer vencer e exatamente por isso estarmos mais vulneráveis às criticas dos outros. Ninguém quer saber muito de alguém que se mostra indiferente, já sobre quem assume que quer ganhar recaem sempre desconfianças.
E estas não se referem apenas ao contexto externo, mas principalmente ao contexto interno. Os nossos pensamentos sobre nós próprios, sobre as nossas capacidades ou sobre o nosso lugar num determinado contexto são o que mais nos condiciona, bloqueia ou nos torna inaptos.
Há uma barreira interna difícil de transpor entre assumir o que quero e agir em conformidade. E esta barreira é tão mais difícil de ultrapassar quanto as nossas crenças (limitadoras ou potenciadoras) sobre nós mesmos o permitem.
Desde outubro de 2023, quando voltei a estabelecer objetivos desportivos até há duas semanas atrás foram muitas as aprendizagens. Algumas delas, partilho-as aqui.
⏩ Pessoas. Basta uma pessoa. Aquela que te dá uma ideia. Uma centelha no teu entusiasmo. Uma que te desafie. Foram muitas as pessoas que conheci neste percurso. Que me tornaram uma melhor pessoa e, de certeza, uma atleta mais competente e consciente. Pessoas que celebram as nossas conquistas como se fossem delas próprias. Que enviam mensagens com energia boa. Que querem saber como estamos e qual é a próxima prova. Que são família. Que estão na meta à nossa espera para registar o momento e nos dar aquele abraço. Pessoas que fazem a prova connosco, abdicando da sua, porque querem estar ao lado dos nossos desafios externos e internos. Pessoas que te dizem "para a próxima é melhor treinares sozinha. Só te queixas." porque nos tornámos exatamente nas pessoas com quem não gostamos de estar. Pessoas a quem dizes: "Estou cansada. Não consigo mais." e que te respondem: "Descansas no fim." Pessoas que não alimentam o queixume. Que trabalham o aborrecido. O difícil. O doloroso todos os dias.
⏩ Desafios. Eles vão existir sempre: na montanha, na estrada, na nossa casa, no nosso trabalho, à nossa volta e em nós. Durantes estes meses foram muitos. Alguns maiores do que me sentia preparada. Recordo aqui um relativamente recente que aconteceu durante um treino para uma prova de 25 quilómetros (uma distância que nunca tinha corrido). Já estava há 3 dias a fazer treinos de 10, 13 e 15 quilómetros e aquele deveria dar uma média de 17/18 quilómetros. Sentia-me cansada, mas ainda com trabalho para fazer. Fui para um dos meus lugares favoritos de treino: paisagem maravilhosa e terreno plano e misto (passadiço de madeira e terra batida). Os pensamentos sucederam-se em catadupa, como a poeira que o vento que se fazia sentir levantava. Duvidei de mim. Do que eu era capaz. Da utilidade do meu esforço. Questionei sobre se este desafio não seria demasiado para mim. Talvez devesse manter-me no meu lugar. Naturalmente que o meu lugar é aquele que eu quiser que seja e só depende de mim assumi-lo e honrá-lo com toda a energia, esforço e trabalho. As dúvidas vão existir. A incerteza do resultado também. Fazem parte do processo.
⏩ Processo de Treino. A maior aprendizagem e os maiores motivos de desespero. O processo implica um método, não só de treino específico, mas de ações quotidianas de cuidado físico, nutricional ou mental. Um processo implica resistir à preguiça. Implica trabalhar a todo o momento o músculo da força de vontade. De fazer o que é para fazer em detrimento do que me apetece. De persistir no difícil. No aborrecido. Nos treinos madrugadores, ao calor abrasador entre aulas ou nos tardios. Continua a ser a maior aprendizagem. É um dos motivos de entusiasmo e confiança antes prova e um motivo de celebração no final da prova.
Tenho o privilégio de ter o Bruno a conduzir este processo de treino, embora ele ironicamente diga que sou eu a fazê-lo!😅 A sua experiência, o seu exemplo e a admiração que tenho por ele, ainda antes de o conhecer melhor, fazem com que confie nas suas opções. É essencial.
⏩ Métricas. Medir. Medir. Medir. Os atletas com quem já trabalhei sabem na importância que dou a este tema. Só se pode melhorar o que podemos medir. Medir é concretizar. Não foi imediato, mas recordo o dia em que, depois de uma prova, e já de regresso a casa comentava com o Bruno as minhas estatísticas da prova. Foi a primeira vez que o vi a comentar os dados da performance. Fez-me algumas perguntas. Falámos sobre como me sentia em alguns aspetos relacionados com as provas, nomeadamente o facto de parar para dar passagem a outros atletas. Pediu-me para ver a quantos minutos tinha ficado da pessoa que no meu escalão tinha ficado à minha frente. 30 segundos separaram a terceira classificada no escalão (F40) da quarta (eu!). Ficámos em silêncio. A questão não é o lugar na classificação (já fiquei em 4º outras vezes e em 6º ou em 16º, assim como já fiquei em 3º). A questão é que eu num determinado momento, embora ela não tivesse pedido, parei para a deixar passar. A [outra]questão é: em que outros momentos da minha vida deixo passar quem vem atrás, em detrimento do meu caminho ou o meu objetivo? Em que outros momentos abdiquei/abdico de assumir a liderança?
⏩ Compromisso. Quando se analisam os dados, formula-se uma estratégia. Procura-se corrigir alguns aspetos do que foi analisado e melhorá-los. O foco passa a ser melhorar a cada prova e em cada treino. Estabelecer o compromisso de deixar todas as energias na prova. De não ter aquela sensação no dia seguinte de que talvez pudesse ter feito melhor, como já tinha sentido. Quando tens uma estratégia vais para a prova e sabes o que tens de fazer. O teu trabalho é adequar a estratégia ao terreno e à imprevisibilidade características de uma prova. Se dás o teu melhor e a estratégia funciona, celebras. Se dás o teu melhor e a estratégia não funciona, analisas e aprendes.
⏩ Competição. Quando nos comprometemos com o processo de sermos e darmos o nosso melhor tratamos de nos posicionar à frente. E aí, percebi à primeira, não há ruído. Não há distrações. Ninguém perde tempo a queixar-se do terreno, do desnível, do calor ou do frio, da sua condição física ou dos quilómetros que ainda faltam. Há foco. Só há uma direção: chegar à meta.
Querer ganhar ou competir é inerente ao honrar o teu trabalho, os teus treinos, o teu esforço, o teu treinador e até os adversários. O ganhar, assim como o competir, terá o valor que lhe quisermos dar. E é inerente a quem participa e está na arena, que é como quem diz, que vive e se apressa porque quer estar à altura do que lhe acontece.