quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Sobre o Caminho [iii]

 
Dia 2.

Finisterra-Oliveiroa

31 km aproximadamente

 
O dia seguinte amanheceu com sol na bonita cidade de Finisterra. O burburinho típico dos que se levantam ainda de madrugada para seguir o seu caminho fez com que a noite tenha sido mais curta do que precisávamos. Dormimos nos nossos sacos-cama num hall perto dos outros quartos mas pareceu-nos um luxo, considerando a possibilidade de dormir ao relento. As noites na Galiza, mesmo em junho, eram frias.
Partimos em direção à praia e tivemos ainda tempo de tirar algumas fotos em grupo. Percebi mais tarde que o tempo usado para estas pequenas pausas tería sido útil noutro momento do Caminho. Percebo agora, volvidos 8 anos, que esse momento na praia foi o último de sentida descontração e genuína diversão em grupo.
O Caminho continuava à nossa frente e durante ainda alguns quilómetros pudemos ver o mar à nossa esquerda. Uma paisagem maravilhosa difícil de descrever por palavras: o azul do mar estendia-se pelo horizonte até não ter fim.
Antes de entrarmos pelas montanhas com destino a Oliveiroa, parámos em Cee para descansar e recuperar energias. Gentilmente alguns farmacêuticos, vendo o nosso estado de cansaço, ofereceram-nos pomadas para as tendinites e barras energéticas. Recomendaram-nos que ingeríssemos calorias, nomeadamente chocolate. Neste momento houve algum desconforto no grupo porque o Martin sugeriu desistir do Caminho. Estava cheio de dores e pensou seriamente em fazê-lo. Com algum entusiasmo e espírito de equipa tentámos demovê-lo dessa ideia e conseguimos, embora não por muitos mais quilómetros.
Tento descrever o que se passou a seguir e, ao mesmo tempo, esforçar-me para não me tornar repetitiva mas não é tarefa fácil. A partir de Cee a situação piorou: as dores acentuaram-se e os ânimos foram ficando resfriados, consequências de uma falta de preparação evidente para um percurso tão longo e intensivo como aquele que nos propusemos fazer.
Já em plena montanha, entendemos que não eram só os nossos ânimos que estavam resfriados, também o tempo começou a mudar e a ficar escuro e frio. Não tardámos a perceber que uma das situações mais caricaturada em postais, canecas e outros "recuerdos" galegos era realmente verdade, mesmo na época estival em que nos encontrávamos: o homem de gabardine numa tempestade hiperbolizada.
Faltavam aproximadamente 15 quilómetros para o nosso destino quando começou a chover torrencialmente. A chuva aparecera e nós não estávamos preparados para a sua visita. Aliás, ainda nesse dia estava a curar um escaldão de que fui alvo no dia anterior. Escusado será dizer que, se as dores eram muitas, nessa altura a nossa preocupação voltou-se para a situação de  estarmos sem qualquer tipo de proteção. Durante horas a chuva não teve piedade de nós e, algo que nos preocupava mais, o dia estava a fazer-se escuro. Também nessa altura, apercebemo-nos de que há alguns quilómetros que não víamos a concha (Vieira) que dava as indicações para o Caminho certo. Andávamos por entre a montanha com o sentimento de estar à deriva.
O poder da chuva é extraordinariamente demolidor. Não falo naquela chuva miudinha e durante um curto espaço de tempo que invade os cenários das comédias românticas. Falo daquela grossa e que durante horas, sem impermeável ou chapéu que nos valha, cai incessantemente sobre o corpo cansado e acelera a exaustão da mente. Dessa chuva, essa que mói e que tortura. Dessa não sinto saudades.

O estado de espírito geral não era animador mas nunca, em 32 anos de vida, senti tanto estímulo, carinho e amizade como naquele momento em que, sem força anímica, me deixei para o final da fila. Era no final da fila, longe dos olhares, que maldizíamos o fato de não encontrarmos a Vieira, o termos demorado mais tempo nas fotos, o não termos pensado nos impermeáveis ou nos chapéus-de-chuva. Era no final da fila que chorávamos. Eu chorei para logo a seguir sentir ao meu lado a Yustyna e a Danuta que me puseram a aprender os números em polaco: "jeden" dizia ela e eu com o meu polaco macarrónico, tentando imitá-la, repetia. A minha tentativa arrancou dos caminhantes cabisbaixos uma gargalhada geral. Ela continuou: “dwa” e eu também, bem como os sorrisos complacentes com a minha falta de aptidão para o polaco. Sorrisos cansados e calorosos.
Alguns minutos depois encontrámos a Vieira e seguimos mais motivados para o Albergue de Oliveiroa.
Quando lá chegámos, os beliches estavam cheios mas outros peregrinos, devidamente preparados ofereceram-nos as suas camas. Eles não souberam mas estou-lhes eternamente grata. A responsável pelo albergue fez-nos sopa quente ue comemos com uma enorme satisfação. Falámos um pouco sobre o dia seguinte e a possibilidade de alguns do grupo abandonarem o caminho e regressarem de autocarro a Santiago. Queríamos deixar essa decisão para o dia seguinte. O cansaço apoderou-se de nós e depois dos habituais estímulos e e palavras amigas, deitámo-nos. Neste momento não me consigo lembrar se tinha dores, mas lembro-me que psicologicamente me sentia profundamente cansada. Lembro-me de ter agradecido o estar ali.

 

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