Dia 3
Olveiroa-Negreira
33 km. Aproximadamente
A minha decisão de fazer o Caminho de Santiago
além de ter sido de uma enorme irresponsabilidade devido à falta de preparação
física, prendeu-se com objetivos que inicialmente estavam um pouco afastados da
Fé que, segundo indicações escritas na credencial que acompanha o peregrino, é
o único motivo que deve mover este a realizá-lo.
Durante a minha estadia em Santiago ouvi muitas
vezes outros alunos falarem do Caminho. Vi centenas de vezes a Praça do
Obradoiro repleta deles que, com uma última réstia de força subiam, mais
animados, as escadas da Catedral. Admirava-os e o seu espírito de abnegação
emocionava-me.
Como disse antes, inicialmente o espírito de
aventura cativara-me de uma forma avassaladora e aceitei, literalmente de um
dia para o outro, fazê-la na companhia daqueles que tinham sido a minha família
durante aqueles 6 meses.
No entanto, inevitavelmente o Caminho
aproxima-nos d´Ele. E sentimos a Sua presença discreta. Perguntamos se nos está
a ouvir. Pedimos que a chuva pare ou que tenhamos força anímica para seguir em
frente. Demorei algum tempo a conseguir escrever isto mas esta é a verdade e
esta vertente religiosa revelou-se-me no terceiro dia de Caminho.
Despedimo-nos do Martin, da Gosia e da Danuta e a
tristeza desta despedida, por tudo o que tinha significado para nós o Caminho
até à altura e todos os outros que até dias antes tínhamos feito em conjunto,
deixou-nos mergulhados em pensamentos e recordações. Saímos sem a sua presença e sem vontade de
falar.
Poucos quilómetros mais à frente, a chuva voltou
a aparecer, a memória do dia anterior voltou e dei por mim a rezar o terço. Não
sei exatamente se rezei bem, como deve ser rezado e acompanhado. Sei que me
lembrei das noites em que a avó Encarnação me ensinava, a mim e aos meus
primos, e tentei reproduzir alguns desses ensinamentos. Rezava para a chuva
parar. Sempre que ela nos dava tréguas em sorria e cheia de alento agradecia-Lhe.
Numa das ocasiões em que já estávamos a caminhar
há uma hora debaixo de chuva parámos num pequeno (mesmo pequeno) café. Estava
exausta e queria desistir. Disse-o aos meus companheiros mas os seus olhares
ficaram em silêncio. Dirigi-me à empregada de balcão e perguntei-lhe a que
horas passava o próximo autocarro para Santiago. Disse-me num tom desanimado de
galego quase puro: "O único que existe saiu há 15 minutos." Sorri,
considerando a ironia. Olhei para eles, pus a minha mochila às costas e segui
viagem. Entendi, naquele momento, que só havia um sitio para ir, um caminho a
seguir, uma decisão a tomar. Desta forma, pusemo-nos ao Caminho.
Chegámos a Negreira debaixo de chuva intensa. A
mesma chuva que horas antes tinha começado a cair e que depois de tanto tempo
batendo no meu corpo, ensopando-me fez-me, por momentos, alucinar. Durante uma
etapa em que a floresta nos envolvia, virei-me para ver de onde vinha o barulho
que tinha ouvido e "vi" um enorme cão com dentes afiados vir na minha
direção. Estava a alucinar. Acredito que os leitores mais céticos tenham alguma
dificuldade em acreditar, mas foi isto que eu vi. Lembro-me bem porque foi
muito real, mesmo não tendo sido verdadeiramente real.
Em Negreira o albergue também estava cheio mas
acomodámo-nos na sala/receção. Tomámos um bom duche e conseguimos sair para
comprar algo para jantar. A média de idades dos peregrinos que ali estavam
rondava os 40 anos. De certeza que nós, com os nossos 20/25 anos fizemos com
que ela baixasse. Conhecemos pessoas de todo o mundo, peregrinos que estavam no
seu 1000º quilómetro. Histórias de vida de empenho, entusiasmo e
preserverância. Vidas que são autênticos Caminhos. Uma das histórias que ouvi e
que normalmente conto aos meus alunos está relacionada com um australiano que
há anos que andava a percorrer Caminhos por todos os continentes. Vinha sozinho
e eu perguntei-lhe porquê. Ele disse-nos que meses antes tinha convidado alguns
dos seus melhores amigos a juntarem-se a esta sua aventura. Na altura, referiu, uns 10
disseram logo que sim. Meses mais tarde, voltou a questioná-los sobre a sua
disponibilidade e apenas uns 5/6 mostraram interesse, embora com alguma
relutância porque não tinham preparação, tinham que programar as coisas com
tempo e outras desculpas. Um mês antes os seus amigos tinham desistido de fazer
a viagem, argumentando da melhor forma que podiam. E ele veio sozinho porque,
como nos disse, se tivesse à espera de companhia não tinha saído da Austrália,
não estaria no seu 1000º quilómetro e não teria tido a oportunidade de nos
contar esta história. Invejei a força de vontade e ainda hoje recorro ao seu
exemplo em diversos âmbitos da minha vida pessoal e profissional.
Nessa noite também conheci um homem que viria a
ser determinante para o meu objetivo de terminar o Caminho. Não sei o seu nome,
penso que não estabelecemos um diálogo de circunstância. Chegou-se perto de mim
e perguntou-me, em espanhol, se eu estava bem. Disse-lhe que sim, embora
tivesse algumas dores e bolhas nos pés, estava bem! Escondia os pés porque os
tinha negros: as meias pretas, debaixo de chuva...já se sabe. Perguntou-me se
os podia ver e eu, muito envergonhada, mostrei-lhos. "Precisa de ser
tratada", disse-me, "Bem...isto se realmente quiser terminar o
Caminho". Disse-lhe que não valia a pena porque no dia seguinte estaria em
Santiago. Olhou para mim e disse-me com ar sério "se quiser chegar a
Santiago tem de deixar que eu a ajude. Posso?" Com um sorriso, disse-lhe
que sim. Tratou das minhas bolhas e deu-me um creme para massajar os pés. Pediu
à vigilante para me colocar no quarto reservado às pessoas com deficiência
motora mas eu recusei perentoriamente: não me ia afastar da animação típica dos
albergues e da confraternização e não me ia deitar confortavelmente enquanto os
meus companheiros estavam a dormir no chão. Ele era médico, disse-me depois, e
talvez tenha sido também por sua causa que consegui chegar a Santiago no dia seguinte.
Talvez...
Dormi com um conforto que até aí não tinha
sentido: um conforto emocional e espiritual também. Dormi profundamente.