quarta-feira, 19 de março de 2014

Considerações mais ou menos supérfluas sobre o Belo

Em conversa com uma recente amiga (ou alguém que para aí caminha) falávamos da questão de nos deixarmos enredar e deslumbrar pela singeleza do que é (ou nos parece) esteticamente Belo. Recordei que por vezes acontece-me ter esse sentimento em pequenas coisas no meu dia: uma paisagem ou um lugar; uma determinada situação ou uma música. É realmente uma sensação fantástica de felicidade (?!?!?) e de comunhão. Uma consciência de pertença extraordinária. Esta minha afirmação é corroborada pelas palavras de Cleide Rita Silvério que, parafraseando Edgar Morin, refere que “a estética está presente em vários gestos e ações cotidianas que provocam encantamento, não se restringindo às obras de arte. Assim, os símbolos, o lado poético e o sentir estético podem ser vivenciados por vários caminhos.”
Talvez estas palavras não façam qualquer sentido para o leitor que está acostumado a ver-me ser mais concreta mas peço-lhe que me dê o desconto por estar há semanas sem ter uma noite de sono produtiva e hoje… hoje é sobre isto mesmo que me apetece escrever.
Por considerar francamente belo o esforço e dedicação que colocamos em cada dia da nossa vida; por considerar que em cada dia nos atarefamos, cada um à sua maneira, por fazer mais e melhor; por desejar que cada dia seja mais um para me superar; afastar os medos e arriscar e, em última análise, estar consciente de uma mudança premente que me leve em busca de “Ítaca”, partilho hoje um poema de Konstantinos Kaváfis, poeta grego nascido em Alexandria a 29 de abril de 1863.  É um poema sobre uma viagem que todos nós em algum momento faremos ou já fizemos na procura do nosso verdadeiro sentido de existência. A sua extensão apenas realça a sua grandiosidade. 

“Se partires um dia rumo a Ítaca, 
faz votos de que o caminho seja longo, 
repleto de aventuras, repleto de saber. 
Nem Lestrigões nem os Ciclopes 
nem o colérico Posídon te intimidem; 
eles no teu caminho jamais encontrarás 
se altivo for teu pensamento, se sutil 
emoção teu corpo e teu espírito tocar. 
Nem Lestrigões nem os Ciclopes, 
nem o bravio Posídon hás de ver, 
se tu mesmo não os levares dentro da alma, 
se tua alma não os puser diante de ti. 
 Faz votos de que o caminho seja longo. 
Numerosas serão as manhãs de verão 
nas quais, com que prazer, com que alegria, 
tu hás de entrar pela primeira vez porto 
para correr as lojas dos fenícios 
e belas mercancias adquirir: 
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, 
e perfumes sensuais de toda espécie, 
quanto houver de aromas deleitosos. 
A muitas cidades do Egito peregrina 
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente. 
Estás predestinado a ali chegar 
Mas não apresses a viagem nunca. 
Melhor muitos anos levares de jornada 
e fundares na ilha velho enfim, 
rico de quanto ganhaste no caminho, 
sem esperar riquezas que Ítaca te desse. 
Uma bela viagem deu-te Ítaca. 
Sem ela não te ponhas a caminho. 
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te. 
 Ítaca não te iludiu, se a achas pobre. 
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, 
E agora sabes o que significam

 (Kaváfis, 2006, p. 146-147)