terça-feira, 15 de maio de 2012

Sobre o Caminho [ii]


Percurso: Múxia-Santiago
Kilómetros: 120 (aproximadamente)
Dias estimados para a realização do percurso: quatro
"Caminhantes": Inês (Portugal); Gosia, Danusia, Madjek, Yustena (Polonia), Martín (Suiça) e Lenka (Repúblia Checa)

Múxia, 11 de junho de 2005

Dia1: Múxia-Finisterra

Na manhã do dia 11 de junho saimos de autocarro em direção a Muxia. Era de lá que iriamos sair com destino a Finisterra onde fariamos a primeira paragem destes quatro dias de Caminho. O grupo estava animado e muito entusiasmado com o percurso. Sentiamos estávamos a começar uma grande aventura. Sim, era isso que ingenuamente sentiamos quando deixamos a paisagem inspiradora e rochosa de Muxia.
Os primeiros quilómetros foram passados em animada excitação por estarmos juntos falávamos, parece-me agora, alto e estranhei muito que os restantes peregrinos que encontrámos no caminho permanecessem em silêncio mesmo indo em grupo.
O Caminho de Santiago é feito, na sua maioria, por estradas de terra batida com arbustos que nos escondem, pinhais, riachos ou pequenas ribeiras que tinhamos de atravessar não sem antes nos refrescarmos. Vi paisagens lindissimas por todo o interior da Galiza, ouvi os falares recônditos dos galegos, fui alvo da simpatia destas gentes humildes e trabalhadoras que têm fama de ser desconfiados mas que nos acolhem como se fôssemos uns dos seus.
Vislumbrámos Finisterra (o fim da terra) no final da tarde desse dia. Estávamos, escusado será dizer, exaustos e cheios de dores em tudo o que fossem articulações. Tinhamos já alguns "peregrinos" com aviso de tendinites e os últimos kilómetros do caminho desse dia foram já feitos com lágrimas nos olhos. Começávamos a dar-nos conta que talvez tivesse sido demasiado imprudente pormo-nos ao caminho sem a preparação física conveniente para este tipo de situações.
A lesão contraída anos antes no joelho deu sinais da sua existência a 10 km do albergue de Finisterra. Consegui suportar repativamente bem a dor e só desejava poder ter uma boa noite de sono para recuperar energias.
À chegada ao albergue fomos informados de que este estava cheio e que não íamos conseguir pernoitar nele. O cansaço apoderara-se de nós de uma forma que não nos permitia reclamar sequer. Ficámos sem reação. Estávamos inertes e nem falar conseguiamos, quanto mais raciocinar. Talvez o Madjek, o mais calmo e menos cansado do grupo, tenha ido falar com a senhora porque ele regressou com um sorriso, dizendo "Deixam-nos ficar aqui mas temos que dormir no chão." Era completamente irrelevante dormirmos no chão ou não e, movidos por um novo alento, entrámos no albergue. Não me lembro de ter jantado, mas sei que o duche me soube muito bem e sem dar conta caía num sono profundo.
A rede de albergues espalhada por todo o percurso do Caminho de Santiago é gratuita para todos os que comprovem ser peregrinos a pé, em bicicleta ou a cavalo através da credencial do peregrino que deve ter carimbados os símbolos das diversas regiões pelas quais fomos passando. Esse era o nosso passaporte para a entrada nos albergues.

Assim estava o dia um terminado. A nossa ideia inicial começava a mudar...

sábado, 12 de maio de 2012

Sobre O Caminho [i]

Há já algum tempo que queria escrever sobre uma das experiências que fez com que eu hoje em dia seja da forma que sou. É daquelas experiências que transformou a forma de pensar a minha vida e os que me rodeiam. Não são muitas as pessoas que sabem da sua existência, pelo menos de uma forma detalhada: ela é extensa e acaba por ser inglório tentar contá-la porque penso sempre que ninguém a compreende realmente.
Neste espaço não tenho esse problema: sou eu a escrever e, quanto muito, um ou dois leitores disponíveis para a ler. Assim sendo, se estes optarem por ler o que aqui está escrito a responsabilidade é exclusivamente sua, assim como a liberdade de deixarem de o ler.
Devo alertar que, embora o que aqui possa ser descrito pareça pouco verosímil, acentuando o facto de já terem passado alguns anos e os detalhes estarem já esquecidos, nas linhas [e posts] que se seguem não haverá nada que não reflita a verdade.


Santiago de Compostela, fevereiro de 2005

 Depois de um processo complexo (nada semelhante ao que acontece atualmente) fui selecionada para o Programa de mobilidade de Estudantes Erasmus na Universidade de Filologia da Universidade de Santiago de Compostela.
Em fevereiro de 2005 começava aquele que eu esperava (e tinha a plena convicção que assim teria que ser) que fosse o meu último semestre como estudante. Os receios eram muitos mas as expectativas também.  
O meu percurso académico em Santiago foi excecionalmente trabalhoso: era de bom grado que frequentava a biblioteca da cidade aberta 24 horas por dia em época de exames. Achava fantástico estar cheia a altas horas da manhã e ter, ainda por cima, pessoas aparentemente empenhadas no estudo. Aconteceu mais do que uma vez, ir até lá só para ver o "ambiente" depois de sair de um qualquer "mesón". Não faltava a nenhuma aula, tirava apontamentos até me doerem as mãos, fazia repetidamente exercícios de linguística espanhola, pesquisava insistentemente sobre bibliografia para o meu seminário de final de licenciatura.
Mas o meu percurso académico em Santiago não foi só estudar. As festas Erasmus eram uma constante por toda a cidade. Os finais de tarde num "mesón" acompanhados por um copo de vinho e uma tapa de presunto e queijo (não tínhamos dinheiro para grandes luxos!), jantares típicos de partilha do que de melhor tem Portugal, Polónia, República Checa e Suiça, passeios pela cidade ao amanhecer...
Foram sem qualquer tipo de dúvida momentos fantásticos os que passámos ao longo dos seis meses. Quando a nossa estadia estava a chegar ao fim um dos simpáticos polacos fez-nos (aos sete) uma proposta: fazer o único Caminho de Santiago que em vez de chegar à cidade de Santiago de Compostela (como acontece aliás com quase todos), sai dessa cidade e chega à aldeia de Muxia na Costa da Morte (deve o seu nome à quantidade de rochas que e que é/foi motivadora de vários naufrágios). Por uma questão de timming, o querido polaco cujo nome nem sequer tento escrever sugeriu que fizéssemos o caminho ao contrário uma vez que dizia-se que as paisagens mais bonitas eram as que iriamos encontrar em Muxia/Finisterra.
Neste momento, o motivo que nos levava a fazer o Caminho era pura e simplesmente turístico quando, na credencial que posteriormente arranjámos, vinha escrito que o único motivo pelo qual se deve fazer é o religioso.
Em três dias arranjámos o que era (ou o que pensávamos que era) necessário: a credencial que nos certificava como peregrinos, uma mochila com [pouca] roupa, alguma comida e um saco-cama.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Sobre acreditar.

Há uns dias encontrei este excerto numa conhecida página de citações, pensamentos, poemas, provérbios. O que me chamou a atenção foi o seu título "cada dia é sempre diferente dos outros" porque no contexto do meu trabalho esse é um dos argumentos optimistas para a minha motivação profissional, aparentemente tão estranha para alguns que me rodeiam.
O mais curioso é que embora se refiram a contextos diferentes, há palavras que entre a minha motivação e ele [o texto] se interrelacionam: [deixar de] Aprender. Memória[s]. [deixar de] Acreditar.
Cada dia [dos meus] é sempre diferente dos outros porque não equaciono deixar de aprender, porque não penso voltar atrás e pedir explicações, porque em cada dia há respostas para encontrar, há situações para esclarecer, há um caminho a seguir, há memórias para recordar, lugares para conhecer, lições para aprender, momentos para passar, sorrisos para partilhar, pequenas sementes para regar, frutos para colher. Porque há, enfim, valores nos quais vale a pena acreditar.
Cada dia é sempre diferente dos outros porque é o meu dia, porque não terei oportunidade de o viver duas vezes mesmo quando, como diz o excerto "se faz aquilo que já se fez".

 
Cada Dia é Sempre Diferente dos Outros

Cada dia é sempre diferente dos outros, mesmo quando se faz aquilo que já se fez. Porque nós somos sempre diferentes todos os dias, estamos sempre a crescer e a saber cada vez mais, mesmo quando percebemos que aquilo em que acreditávamos não era certo e nos parece que voltámos atrás. Nunca voltamos atrás. Não se pode voltar atrás, não se pode deixar de crescer sempre, não se pode não aprender. Somos obrigados a isso todos os dias. Mesmo que, às vezes, esqueçamos muito daquilo que aprendemos antes. Mas, ainda assim, quando percebemos que esquecemos, lembramo-nos e, por isso, nunca é exactamente igual.
— Porquê, pai?
— Porque a memória não deixa que seja igual, mesmo que seja uma memória muito vaga, mesmo que seja só assim uma espécie de sensação muito vaga. É que a memória não é sempre aquilo que gostaríamos que fosse. Grande parte dos nossos problemas estão na memória volúvel que possuímos. Aquilo que é hoje uma verdade absoluta, amanhã pode não ter nenhum valor. Porque nos esquecemos, filho. Esquecemos muito daquilo que aprendemos. E cansamo-nos. E quando estamos cansados, deixamos de aprender. Queremos não aprender por vontade. Essa é a nossa maneira de resistir, mais ou menos, àquilo que nos custa entender. E aquilo que nos custa entender pode ter muitas formas, pode chegar de muitos lugares.
— Porquê, pai?
— Porque nos parece que é assim. Mas talvez não seja assim. Aquilo que nos custa entender é sempre uma surpresa que nos contradiz. Então, procuramos convencer-nos das mais diversas maneiras, encontramos as respostas mais elaboradas e incríveis para as perguntas mais simples. E acreditamos mesmo nelas, queremos mesmo acreditar nelas e somos capazes. Somos mesmo capazes. Não imaginas aquilo em que somos capazes de acreditar.
— Porquê, pai?
— Porque temos de sobreviver. Porque, à noite, a esta hora, temos de encontrar força para conseguirmos dormir, descansar, e temos de acreditar que no dia seguinte poderemos acordar na vida que quisemos, que desejámos. Temos de acreditar que poderemos acordar na vida que conseguimos construir e que essa vida tem valor, vale a pena. Muito mais difícil do que esse esforço é considerarmos que fomos incapazes, que não conseguimos melhor, que a culpa foi nossa, toda e exclusiva.


José Luís Peixoto, in 'Abraço'


domingo, 6 de maio de 2012

Sobre "Ficar sem palavras"

Não deixa de ser uma expressão curiosa: "Ficar sem palavras".
Hoje dei por mim a pensar nesta expressão e no seu significado. Ela normalmente é utilizada quando algo nos apanha de surpresa e na realidade não sabemos bem o que dizer/como reagir. Na verdade, "ficar sem palavras" acaba por ser uma boa escapadela ao dizermos exatamente o que sentimos, sem o pré-aviso da razão ou do pensamento minucioso.
É verdade que algumas vezes já fiquei "sem palavras" mas normalmente aquela sensação de euforia, sentimento de gratidão, bem-estar ou felicidade que sinto vêm, no meu caso, acompanhados de uma natural tendência para expressar repetidamente o que sinto.
Gosto quando acontece porque, sabe quem me conhece, não sou rapariga para grandes elogios e menos o faço de uma forma gratuita e portanto, para mim, são sempre momentos em que sinto que me exponho.
Este fim de semana em terras scalabitanas deu-me a oportunidade de sentir todos aqueles sentimentos a que já fiz referência e muitos outros, dos pequenos e simples que enchem o coração. Quando regresso de convívios como o que aconteceu este fim de semana não posso deixar de pensar no poder da amizade, da partilha e cumplicidade, da entreajuda, da boa disposição, do inter e intra conhecimento, no espírito de superação, na dedicação, no sorriso quente à chegada, no abraço sentido na despedida.
Fazendo uma breve comparação, diz-se que o ato de leitura é tanto mais produtivo quanto mais robusta for a bagagem literária que temos. De certa forma: quanto mais leio, mais competências literárias, linguísticas, imaginativas, cognitivas vou ter para entender leituras futuras.
Quando penso no meu papel no seio do grupo (de um grupo especial de corrida a que orgulhosamente pertenço!), quando, em momentos que seguem estes fins de semana completamente e cada vez mais familiares, penso que o exemplo da leitura acontece exatamente aqui: quanto mais partilho, mais conheço outras realidades, quanto mais me aproximo do "diferente" de mim, mais respeito, mais sinto vontade de regressar, mais elogio, mais confortável me sinto, mais confio, mais me identifico, mais aprendo.

Parabéns Tuna Feminina Scalabitana. Obrigada às cúmplices de aventuras FFerventis.